Ao longo dos anos, meus gostos literários costumam mudar
muito, quase como uma metamorfose ambulante. No entanto, uma coisa é sempre
certa, não importa o que aconteça: minha paixão pela obra de Jane Austen.
A obra de Austen é atemporal, irônica, doce e ao mesmo tempo
séria. Mostra o papel da mulher numa época em que ser questionadora,
independente e dona de suas próprias opiniões poderia ser visto como inadequado
aos padrões.
Elizabeth Bennet, de Orgulho
e Preconceito, é, talvez, a mais famosas de suas personagens e traz em si, bem
claramente, todas essas características.
Recentemente, li novamente Orgulho e Preconceito. Fazia pelo menos uns 10 anos que eu tinha lido
a obra pela última vez. Depois disso, me mantive em contato com a história apenas assistindo,
milhões de vezes, ao filme de 2005, com Keira Knigthley.
Eu tenho a sensação de que a cada nova leitura, surge uma
nova interpretação. É fascinante ver uma obra assim, que desperta tantas
emoções em seus leitores.
Jane Austen acreditava no amor como algo que mudava o
indivíduo, que trazia o seu melhor à tona. E ela levou seus ideais para sua
vida.
Há rumores de que ela, que morreu solteira, chegou a aceitar
um pedido de casamento de um rapaz rico, durante sua juventude, mas acabou
fugindo porque havia desistido da ideia.
A própria Elizabeth Bennet rejeita o pedido de casamento de
seu primo, Sr. Collins, mesmo sabendo que ele será o herdeiro das posses do Sr.
Bennet, após a morte dele. Naquela época, era comum que filhas
mulheres não herdassem as posses de seus pais, quando esses morriam.
Aliás, ao que tudo indica, a obra Orgulho e Preconceito foi levemente inspirada na vida de Jane
Austen. Digo levemente, porque (spoiler alert!), ao contrário de Elizabeth,
Jane não teve um final feliz com seu Sr. Darcy.
O filme Amor e
Inocência ("Becoming Jane", em inglês), com Anne Hathaway no papel de Jane Austen, conta esta história e
mostra um pouco como surgiram as ideias iniciais para Orgulho e Preconceito, que, originalmente, se chamava First Impressions – em tradução livre, Primeiras Impressões.
Cartaz do filme "Amor e Inocência", que conta um pouco da história de Jane Austen. Corre, que tem no Netlix! |
O romance de costumes já era conhecido do grande público,
mas teve seu auge com Austen. E o trabalho dela é preciso ao analisar como o indivíduo
reage, e se molda, aos costumes e tradições de seu tempo. As formas de acomodação, os sinais de respeito
e outros indicadores comportamentais fornecem extenso material para uma análise
sobre o desenvolvimento psicológico das personagens.
Leitores modernos devem ter em mente que questões de gênero
surgiam em estado prematuro.
A abordagem a aspectos mundanos de nossas vidas, como medos
profundos, sentimentos, experiências e expectativas, era algo recente e que precisava
que algo novo fosse criado para que tais ideais pudessem ser exploradas
devidamente. Em outras palavras, é aí que vemos surgir uma mudança
de consciência com relação ao indivíduo, seja por um curso natural da evolução
do pensamento humano ou talvez por uma influência mais evidente das diversas
revoluções científicas e tecnológicas que surgiam à época. Mais tarde, surgiria o Iluminismo, trazendo de vez uma nova forma de pensar.
Contemporâneos de Jane Austen consideravam o romance como
algo irrelevante. Alguns chegavam a dizer que os romances espalhavam a
imoralidade e poluíam as mentes de quem os lia.
No capítulo V, de A
Abadia de Northanger, Austen deixa clara sua opinião. Ela diz que, no
romance, “se revelam as maiores possibilidades de espírito, um conhecimento
mais perfeito da natureza humana, os mais felizes esboços das suas variações,
as mais vivas efusões de espírito e de graça, transmitidas ao mundo no mais
belo estilo. ”
A ironia de Austen
“Trata-se de uma verdade universalmente
conhecida que um homem solteiro, dotado de uma considerável
fortuna, deve estar precisando de esposa. ”
A frase de abertura de Orgulho
e Preconceito deveria vir com uma marca de rodapé dizendo: contém ironia.
A referência ao termo “verdade universal” é na verdade uma
indicação ao mundo restrito daquelas personagens. Ela reflete, exclusivamente,
a ideologia da Sra. Bennet, uma mãe de cinco filhas que vive pensando como arrumar
um casamento lucrativo para suas meninas.
Logo no fim do primeiro capítulo, vemos como é a
personalidade da Sra. Bennet, mãe de Elizabeth, em uma conversa com seu marido,
sobre a chegada do solteiro cobiçado, Sr. Bingley.
Seu legado
A construção das personagens de Jane Austen não é tão simples
como parece. E é aí que, creio eu, está o traço mais marcante de seu legado.
Os romances de Austen baseiam-se nas vidas de jovens
inglesas dos séculos XVIII e XIX. São jovens que vem de famílias cujos pais são
ausentes ou inábeis; cujos destinos não são traçados em detrimento de linhagens
familiares ou qualquer outro tipo de influência social.
Suas protagonistas não são filhas da sorte, ou da falta dela
e, com a clara exceção de Emma, vem de famílias de classe média baixa e não
possuem notabilidade social. São pessoas realmente medianas e que são
constantemente lembradas disso, por aqueles que possuem um nível mais alto na
escala social da época. No entanto, elas não são vítimas de má sorte. Quando esta
surge, ela tem um propósito: fazer as coisas terem mais sentido; fazer a razão
entrar em cena, para consertar aquilo que é necessário.
Nesse contexto, entre a sorte e a má sorte, entre a
aristocracia e a classe operária, que Austen interpreta a vida de um indivíduo
como sendo parte de um processo orgânico de crescimento, desenvolvimento, crise
e autorreflexão. Daí a sua enorme estima
pela educação: a grande equalizadora na mudança de vida de homens e mulheres.
A educação é um processo longo, precisa sempre ser alimentada
e, em um sentido mais profundo, pede que seus personagens vivam e sintam.
Os personagens de Austen trabalham duro para desfazerem suas
preconcepções e, assim, tornarem-se autores de suas próprias histórias. Da
mesma forma que Mr. Darcy se empenha em parecer, e ser, uma pessoa melhor,
Elizabeth se esforça para mudar suas ideias e sentimentos em relação a ele, tão
fortemente firmados no início da história.
Sob tal perspectiva, vemos que a educação é o caminho para o
desenvolvimento intelectual e moral; e a honestidade e a autorreflexão são as
guias deste caminho.
Para ela, é claro que o autoconhecimento não vem de uma
grande experiência de mundo, mas sim que o objetivo claro da educação deveria
ser a harmonia entre o indivíduo e seu mundo.
O legado que perdura nas obras de Jane Austen é sua
concepção elevada sobre o amor. Não somente porque ele nos leva a algo sentimental
e substancial. Mas sim porque ele traz em si, inerentemente, o senso de amizade
e de igualdade. O amor nos torna iguais e amigos. Amigos, porque somos iguais.
Em seu romance, o amor é a bússola moral de maridos e
mulheres, que lhes dá direção. A vivacidade de Elizabeth é contrastada pela
timidez de Darcy e assim por diante.
Mais do que qualquer outro autor do século XIX, Jane Austen
levou a sério a ligação entre o desenvolvimento do caráter moral das
personagens e a caracterização literária. No florescimento de suas construções,
a virtude e o desejo por ser melhor se fazem mais bonitos, graças ao amor.
- terça-feira, outubro 27, 2015
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